março 31, 2010

Intervir: porquê e para quê?

Podendo já o ter abordado em algum momento e correndo o risco de me repetir, hoje dedico este pequeno post a um tema de grande importância e que mais do que informar tem como objectivo motivar uma reflexão séria.
Gosto muito, e considero importante realizar tratamentos pre-operatórios, isto é, sessões com um objectivo de melhoria da condição de uma articulação para depois ser submetida a uma intervenção cirúrgica. É importante e facilita o pós-operatório. No caso de uma ligamentoplastia, o facto de um joelho ir mais forte, mais estável, com melhor mobilidade facilita a reabilitação após a intervenção. É igualmente um momento de preparação psicológica e de ganho de confiança. Permite ao doente perceber o que se vai passar a seguir e  dominar os exercícios que numa primeira fase terá de realizar. Contudo, deixa-me um pouco frustrada quando inicio determinados tratamentos convencionais, com o objectivo de evitar uma cirurgia e o doente já vem mentalizado para a intervenção. Quer ser operado e não investe num processo que o poderia retirar do bloco operatório. 
Primeira grande questão, se o objectivo é impedir a cirurgia é necessário que se esteja de corpo e alma, porque isso influência grandemente o sucesso dos tratamentos. Segundo, numa era em que a alteração do estilo de vida é uma proposta inevitável assim como o acolhimento proactivo das recomendação e exercícios a realizar em casa, não estar a 100% significa que não se está disposto a entrar na corrida contra o problema. 
Perguntam vocês nesta fase o que tem tudo isto a ver com o título do post. Na minha humilde opinião, muitas das cirurgias realizadas em ortopedia poderiam ser evitadas com um bom tratamento e o investimento pessoal do doente de que falo atrás. Uma cirurgia não é, ao contrário do que muitas pessoas pensam, a certeza que tudo vai ficar bem. Uma intervenção cirúrgica não é um procedimento inócuo. Tem muitas implicações na saúde em geral porque vamos intervir num corpo que tem uma capacidade incrível de auto-regeneração. Quando entramos modificamos o meio e alteramos as leis do jogo. Assim sendo, a cirurgia deve ser em muitos casos, a última opção. 
É necessário pesar bem os prós e os contras e descartar as soluções mais inócuas. No caso da coluna, porque operar uma escoliose de um adolescente se este não tem dores nem esta comprometido o funcionamento de orgão algum? Fixar vértebras e vértebras para quê? A seguir a fisioterapia pouco poderá fazer para aliviar as dores que vão aparecer por anularmos algumas articulações intervertebrais deixando outras a trabalhar demais para compensar. Porque operar todas as hérnias discais? Algumas delas estiveram presentes tanto tempo sem sabermos. Um dia tivemos uma crise, fizemos um exame e pronto, temos de acabar com ela. Se após os tratamentos, ficarmos sem dor, com a sensibilidade e acção motora normal  porque operar? Quantas vezes alguns anos após a remoção de uma hérnia esta volta a aparecer noutro sítio?

Permitam-me uma crítica social, uma crítica a uma sociedade na qual me incluo e pelo qual também tenho o direito de criticar. Queremos tudo rápido, tudo simples, tudo fácil. A reabilitação exige o nosso tempo, o nosso dinheiro, o nosso esforço. Como eu costumo dizer aos que por mim vão passando, é uma maratona, não uma corrida de velocidade. Será que vale a pena?

Quantas catástrofes o Homem já provocou por tentar alterar a natureza? O nosso corpo faz parte da natureza. É necessário resistir à tentação de provocar alterações que não saberemos controlar.

março 17, 2010

As linhas da globalidade - RPG


Na semana passada estive numa formação avançada de RPG articular com o próprio mestre Philippe Shouchard o que me motivou a escrever. 
Uma fotografia vale mais do que mil palavras, sem dúvida. Esta imagem é de um pescador de Tavira que numa tranquila tarde de domingo tenta "desembaraçar" as suas cordas. A natureza, o Homem nas suas actividades traz-nos imagens excelentes para explicar a realidade. A intuição do senso comum em todas as suas limitações é um grande ponto de partido para a ciência.
Uma lesão ocorre no nosso organismo. O nosso corpo, munido de autonomia tenta a toda o custo fazer adaptações para impedir que todas as lesões cheguem ao consciente. Se cada um de nós tivesse percepção de todas as agressões diárias a vida seria impossível. Seria demasiada informação a processar e a gerir. Morreriamos de stress. O corpo protege as suas hegemonias (funções vitais) e só quando já não consegue mais esconder carrega no botão da dor e informa o sistema central de que o problema fugiu do seu controle. Exactamente como no funcionamento de uma empresa. Os funcionários vão resolvendo os pequenos problemas diários, reportando apenas à Direcção os problemas "major".
O que acontece é que nessa altura a lesão já se transformou numa emaranhada corda de pesca. Não basta tirar um nó, é necessário pesquisar, perceber o trajecto da corda na sua globalidade. Esse é o trabalho a que a RPG se propõe.
No Verão seguinte a ter terminado o curso estive a trabalhar numa clínica de Vila Real de Santo António e guardo com carinho algumas expressões: "parece que tenho aqui uma linha que vai por aqui e por aqui e por aqui"; "melhorei deste ombro mas agora a dor saltou para o outro".
Há muito tempo que o senso comum o sabe, quanto tempo demorará o sistema a reconhecê-lo?
Quando deixaremos de funcionar numa base reducionista de entrar numa clínica para tratar um pulso sem perceber que o aparececimento de uma dor no ombro desse lado tem relação e tem de ser tratado, investigado? Os valores que os seguros, as ARS, a ADSE pagam por tratamento de fisioterapia, a inexistência de entidades que regulem a qualidade dos serviços prestados pelas clínicas e todos os profissionais da reabilitação, o deficitário trabalho em equipa, o desconhecimento das chaves que cada um dispõe para resolver o problema do doente, entre outros, são graves ameaças a que se produza um trabalho de qualidade.